“A MORTE DE PORTUGAL”

limpeza étnico-religiosa da "Santa" Inquisição, Autos-de-Fé, Terreiro do Paço

Para Miguel Real, autor deste excelente livro, frases como «para o Nada, a Não-Existência, caminhamos» (in, Ode, D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, 8 de Outubro de 1824) ou «desde sempre que nos perseguimos (os portugueses aos portugueses) com veneno e brutalidade» (in, Jornal Público, Vasco Pulido Valente, 14 de Julho de 2007), revelam bem a crise de valores nacionais e morais que os portugueses, enquanto povo, enfrentam na contemporaneidade.

«Ao longo de 400 anos, de D. João III a Oliveira Salazar, Portugal criou uma forma mental e uma visão do mundo que se alimentam exclusivamente da negativização do pensamento oposto, da doutrina contrária, da teoria diferente, nulificando igualmente os seus autores – conceito combatido, autor preso, exilado ou morto, livro queimado ou proibido. O pensador portador da diferença era encarado como inimigo a abater ou a esmagar e o povo – eterno rústico aldeão, alimentado pelas malhas da crendice e da superstição – como massa amorfa ignorante a iluminar e a converter. […] Assim, mais do que filosófica ou reflexiva, a cultura portuguesa tem sido eminentemente ideológica, isto é, enformada ou envolvida por um sentido de Estado que lhe guia a orientação político-social, ora entronizando no poder de uma(s) doutrina(s), ora excomungando a(s) doutrina(s) contrárias. […] de Igreja triunfante e perseguidora até ao reinado de D. João V a Igreja perseguida e humilhada no Liberalismo e na I República, trata-se da mesma forma mentis portuguesa, diabolizadora do pensamento alheio, ora castiço, ora “estrangeirado”, ora religioso, ora ateu, ora metafísico, ora cientifista. […] Contaminado de ideologia, o pensamento português deve a sua existência à configuração político-cultural donde emerge, morrendo com ele.»

«[…] Assim, se quiséssemos definir o tempo moderno e contemporâneo da cultura portuguesa entre 1580 – data da perda da independência – e 1980 – data do acordo de pré-adesão à Comunidade Económica Europeia -, passando simbolicamente pelo ano de 1890 – data do Ultimatum britânico a Portugal -, atravessando 400 anos de história pátria, defini-lo-íamos como o tempo do canibalismo, o tempo da culturofagia, o tempo em que os portugueses se foram pesadamente devorando uns aos outros, cada nova doutrina emergente destruindo e esmagando a(s) anterior(es), estatuídas estas como inimigas de vida e de morte, alvos a abater, e as suas obras como negras peçonhas a fazer desaparecer. Católicos ou erasmitas, papistas ou hereges protestantes, jesuítas ou “pombalinos”, religiosos ou maçónicos, tradicionalistas ou modernistas, espiritualistas ou nacionalistas, cada corrente só se entendia como una e independente quando via o seu reflexo “puro” nos olhos aterrorizados e impuros do adversário, quando o desapossava de bens, lhe subtraía o recurso para a sobrevivência e, em última instância, quando o prendia ou matava, por vezes mesmo “matando-o” depois de este estar morto, como sucedeu com os restos mortais de Garcia da Horta, em Goa, exumados e queimados. Porém, se umas correntes “matavam” o morto, privilégio dos dominicanos da Santa Inquisição, auto-orgulhosamente cognominados os “Cães do Senhor”, outras – animadas do mesmo ódio teológico ou racionalista – “ressuscitavam-no”, como aconteceu com os maçónicos e republicanos face ao legado pombalino, fundado numa das mais impressionantes mitologias culturais alguma vez inventadas em Portugal, erguendo a maior e mais importante estátua do Marquês de Pombal em pleno centro de Lisboa.»

«Assassínios individuais e colectivos (perseguição aos judeus pela Inquisição; perseguição da alta nobreza, dos jesuítas, do “herético” Cavaleiro de Oliveira e de pensadores e poetas pré-românticos pelo Marquês de Pombal; perseguição aos comunistas pela Igreja Católica e pelo Estado Novo no século XX), prisões individuais e colectivas – todos os protagonistas da história da cultura portuguesa, com raríssimas excepções, entre as datas indicadas (1580-1980), têm as mãos sujas e não poucos morreram em desespero às suas próprias mãos […]. […] Guerra de extermínio, como o fez durante mais de um quarto de milénio a Inquisição, como o fez durante trinta anos o Marquês de Pombal, como o fizeram liberais e republicanos durante cerca de um século perseguindo a Igreja Católica, e como o fez o Estado Novo a socialistas e comunistas. […] De 1890, data do Ultimatum inglês, a 1980, data da assinatura do pré-acordo de adesão à Comunidade Europeia (então Comunidade Económica Europeia), Portugal habitou o fundo dos fundos da Europa. Face à comunidade internacional, era indisfarçável o retrato de Portugal como país apenas existente no mapa, onde, mau grado todos os triunfalismos internos historicamente dominantes, da Monarquia Constitucional ao fim da I República, passando pelo fascínio imperial do estado Novo e desembocando no sonho comunista de 1975, conviviam majestaticamente a ignorância cultural, o atraso científico e a miséria económica, dados estatisticamente comprováveis. Em 1974, a taxa de analfabetismo rondava os 50% […]. Hoje, apenas os portugueses com menos de 30 anos conhecem, na ainda breve totalidade da sua vida, uma existência sem repressão política e sem guerra […].»
(in, A Morte de Portugal, Miguel Real, Campo das Letras-Editores SA, 2007)