SALAZARISMO, O TEMPO IMPUNE

políticos-comentadores: discurso e metadiscurso

«A vida é uma mistura de bem e de mal, o homem está entre a besta e o anjo, e isto constitui a essência do mundo, que foi, é, e será sempre feito dessa mesma massa. […] O telespectador é colocado dentro do mundo mas ao mesmo tempo acima dele, como se o vivesse não o vivendo. […] Com uma leve carga de resignação, ela (a expressão “é a vida”) pretendia exprimir uma velha sabedoria cristã: aceitemos os males do mundo, os dissabores, tudo o que vai contra a nossa vontade, porque isso resulta de uma lógica e de um poder que nos ultrapassam. […]»

«[...] Em Portugal nada acontece, “não há drama, tudo é intriga e trama” (segundo graffiti no Bairro Alto).[…] No tempo de Salazar “nada acontecia” por excelência. […] O Portugal de hoje prolonga o antigo regime. A não-inscrição não data de agora, é um velho hábito que vem sobretudo da recusa imposta ao indivíduo de se inscrever. Porque inscrever implica acção, afirmação, decisão com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua existência. Foi o salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade – reduzindo-nos a crianças, crianças grandes, adultos infantilizados. O 25 de Abril abriu um processo complexo de luta intensa contra a não-inscrição, pelo menos num plano restrito, com os governos provisórios a tomarem medidas “definitivas”, a criarem “factos (leis, instituições) irreversíveis” antes de caírem, na ânsia desesperada de deixarem obra feita, indestrutível, com a qual contribuíram para a construção da nova sociedade. Simplesmente, o substrato da não-inscrição continuava vivo, e toda essa actividade frenética e delirante para inscrever a Revolução – escrevendo a História – não fazia mais do que alimentar a impossibilidade de inscrever, essa sim, inscrita no mais profundo (ou à superfície inteira) dos inconscientes dos portugueses. Foi assim que o discurso político se tornou dominante na vida portuguesa. Num certo momento ele transvazou para a sociedade civil, identificando todo o poder com o poder político. […]»

«[…] Mais do que tudo o salazarismo foi uma doença que pôs de rastos o povo português. […] Trinta anos depois do estabelecimento da democracia, como funciona o espaço público em Portugal? […] Numa palavra, o Portugal democrático de hoje é ainda uma sociedade de medo. É o medo que impede a crítica. Vivemos numa sociedade sem espírito crítico – que só nasce quando o interesse da comunidade prevalece sobre o dos grupos e das pessoas privadas. […] Portugal conhece uma democracia com um baixo nível de cidadania e de liberdade. […] Em contrapartida, somos um país de democratas em que o juridismo impera, em certas zonas da administração, de maneira obsessiva. Como se, para compensar a não-acção, se devesse registar a mínima palavra ou discurso em actas, relatórios, notas, pareceres… […] Nada tem efeitos reais, transformadores, inovadores, que tragam intensidade à nossa vida colectiva.»

(in, Portugal, Hoje: o Medo de Existir, José Gil, Relógio d’Água Editores, 2005)